Niilismo - Andre Cancian

Então, se colocarmos nossos interesses pessoais de lado, veremos que o que nos inquieta no niilismo é o fato de que ele nos confronta duramente com nossa própria ingenuidade, com o fato de termos nos deixado enganar tão grandiosamente que nossas vidas passaram a depender de mentiras, de suposições imaginárias. Portanto, percebamos que, quando o niilismo aponta essas mentiras, ele não está destruindo a realidade, e sim nossas ilusões. Nessa ótica, o niilismo nada mais é que um exercício de honestidade e imparcialidade, e apenas esvazia a realidade das ficções que nunca existiram de fato. Essa honestidade pode ser dolorosa, mas é um sinal de maturidade. Se a existência, despida de ilusões, nos parece vazia, saibamos ao menos admitir que a culpa é nossa por termos nos enchido delas.

É preferível viver num mundo sem sentido a acreditar num sentido falso para o mundo, que aponta para lugar nenhum.

Certezas são o objetivo de quem busca segurança, não conhecimento.

Não faz sentido procurar certezas no mundo, pois o próprio conceito de certeza foi inventado por nós mesmos — e não com o fim de melhor conhecer o mundo, mas de nos sentirmos mais seguros.

A crença na necessidade de certezas desvirtua nossa compreensão porque, ao aceitarmos a noção de certeza, passamos a investigar a realidade física em busca dessas mesmas certezas, num processo obviamente circular.

Para testar a vitalidade de uma ideia, nada mais confiável que destruí-la e, depois, verificar se tem forças para renascer de suas próprias cinzas.

O niilismo, longe de representar uma medida drástica, não passa de um procedimento de fiscalização da realidade, enfatizando não a destruição, mas a transparência de nosso conhecimento. Assim, quem possui confiança de que suas ideias têm fundamentação sólida, não terá nada a temer. Entretanto, quem emite juízos ocos, fraudulentos, não terá como protegê-los.

O que poderia ser mais ridículo que subordinar toda a nossa compreensão da realidade à crença em valores e conceitos absolutos que todos respeitam, mas ninguém sabe explicar, e que habitam uma realidade na qual não estamos? E o que poderia ser mais inconsequente que considerar tal postura submissa como algo razoável?

Alguém já ouviu a respeito de algum holocausto cometido em nome da incerteza? De mártires que deram suas vidas pela descrença? Ora, ninguém mata em nome da dúvida, ninguém se sacrifica pela realidade. Todas as guerras que travamos repousam em alguma certeza, e todas as certezas são crenças metafísicas para justificar nossos absurdos. Apenas convicções são perigosas. Por isso mesmo, o niilismo não representa perigo algum. Aqueles que dizem o contrário são os que estão tentando proteger suas ilusões dos fatos mais elementares.
Tais indivíduos nunca receariam o niilismo se suas crenças fossem fatos justificáveis — afinal, ninguém tenta proteger a gravidade do niilismo, receando a desintegração do universo; ninguém invoca imperativos universais para defender que é errado fazer transfusões de sangue entre tipos incompatíveis; ninguém precisa ter fé para afirmar que é errado gritar em bibliotecas. Nenhuma moral saudável precisa ser defendida pela anemia metafísica.

Muitos também alegam que o niilismo busca destruir a “ordem social”, mas isso é outro equívoco. O que o niilismo busca destruir são nossas mentiras. Porém, se nossa ordem social repousa em mentiras, é claro que ela será refutada pelo niilismo, mas isso é apenas uma consequência indireta de sermos honestos.

Então se nos perguntam como niilistas vivem, o que poderíamos responder? Ora, vivem como bem entenderem, porém de olhos abertos. Niilistas enfatizam a objetividade, mas isso não significa que desprezem a subjetividade. Apenas têm a prudência de relativizá-la o suficiente para perceber que ela não é tudo o que existe. De qualquer modo, somos seres subjetivos, e só podemos viver enquanto tais. Só devemos ter em mente que nossos pés pisam numa realidade objetiva, sendo ela o que realmente determina nossas vidas. Nessa ótica, se a vida é um sonho, o niilismo seria apenas a tentativa de torná-lo um sonho lúcido.

Não se pode colocar como objeção teórica o fato prático de que niilistas continuam vivos apesar de considerarem que a vida, como todo o resto, equivale a nada, pois o suicídio não é um argumento, assim como o sangue não é honra.

Como não há nada por detrás de nossas ilusões, a lucidez se torna rapidamente insuportável. Asfixiados pelo tédio, oprimidos pela consciência da nulidade da vida, logo retornamos à nossa bolha subjetiva, certos de que não há nada muito interessante fora dela.

Como, em longo prazo, o niilismo é incompatível com a manutenção da vida, é bastante comum ouvirmos que ele é apenas um “estado provisório”, algo a ser “superado”. E isso está correto. Porém, não devemos confundir superar o niilismo prático com refutar o niilismo teórico — flertando com aquele relativismo otimista que parece um elogio à demência.

Afirmamos que tais assuntos são demasiado “profundos” apenas como pretexto para tratá-los superficialmente; dizemos que são “mistérios”, “impossíveis de responder”, apenas porque temos medo das respostas. Outras vezes deixamos essas questões de lado, não para proteger nossas ilusões, mas porque pensamos que investigá-las nos conduziria à loucura. Muito pelo contrário, isso nos conduziria apenas à lucidez, nos permitiria viver com os pés no chão.

Em grande parte, o niilismo consiste na rara capacidade ver o óbvio.

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